glossário

africar – verbo criativo, para fazer você dançar, religar todos os sentidos, sintonizando-se com o ritmo que nos leva para a África. A palavra surge em uma canção de mesmo nome como uma forma de se desviar/sintetizar tanto do ideal de back to África físico, de Marcus Garvey quanto o de retorno imaginário, da negritude de Aimé Cesáire. Não se trata de remeter a nenhuma essência, nem a alguma forma de identidade essencializada, mas de deslocar e multiplicar sentidos e centros, como o ritmo da canção sinaliza. Esse sentido ativo, da África em todo o lugar, foi captado e articulado pela produção do programa Lazinho com Você ao propor um desafio colaborativo em que pessoas e grupos de todo Brasil foram convidados para dançar essa canção: “gaúchos”, com roupa folclórica; pernambucanos misturando passos do frevo; o sapateado na Avenida Paulista; um grupo de dança nas ruas históricas de Salvador; estudantes da UNILAB em São Francisco do Conde etc. todos deram sentido a este verbo. “Africar”, como pensamos, não é sinônimo de “africanar” nem de “africanizar”.

ar(e)te – o crítico e poeta goiano Gilberto Mendonça Teles acredita que o campo semântico da palavra latina arts (técnica) e da grega areté (geralmente traduzida como excelência, virtude) permitem uma aproximação quando se pensa a origem da palavra arte. Adquirir/alcançar excelência é resultado de uma vida que atinge o seu máximo potencial, o que não se faz sem domínio e cuidado com a técnica.  Deste modo a ideia de ar(e)te explora o entrelaçamento da arte, vida e técnica numa perspectiva pragmatista, que dialoga com as descrições de John Dewey, buscando ser versões melhores de nós mesmos.

autoridade semântica – a aquisição de autoridade semântica é um ideal educativo proposto por Richard Rorty como uma forma de redecrever as propostas de formação crítica e/ou da consciência. A capacidade de ter uma fala autorizada e reconhecida depende da possibilidade e capacidade de articular e assumir a “primeira pessoa”, redescrevendo em seus próprios termos ou recontextualizando as narrativas que significam seu mundo. Esta ideia está presente no hip-hop como a necessidade de situar e pensar o seu próprio contexto articulando uma fala que deve ter técnica, ritmo, rimas etc.

Bota a fala/botAfala – “Bota a fala” ou “bota fala” é uma expressão comum ao crioulo de Cabo Verde e Guiné-Bissau, sendo tanto o apelo para que alguém tome a palavra para dizer algo, ou usar a fala como uma forma de bênção, como fazem as benzedeiras, ou mesmo denunciar a conversa fiada de alguém. Encontramos a palavra como título de um poema de Odete Semedo. O nome retoma o método de composição do grupo, que de início partia de beats prontos retirados da internet, focando-se na performance ao vivo, assim como remete à valorização da palavra, um traço comum na cultura africana e no jogo de pedir e dar razões da filosofia. Com a mudança de formação e a mudança de focos para a gravação, com a produção dos própios beats, renomeamos o grupo como botAfala, destacando visualmente este novo momento. 

compromisso socrático– a coragem socrática de dizer a verdade para os poderosos, falando francamente aquilo que pensa, sem ficar preso à moral tradicional, é um dos elementos que o hip hop valoriza e que o tornam uma prática perigosa para as elites. Como explica West: “Diante das manipulações e mentiras da elite, devemos recorrer ao socratismo. O compromisso socrático de questionamento requer autoanálise implacável, assim como a crítica as instituições de autoridade, motivada por uma busca incessante da integridade intelectual e consistência moral. Fica manifesta num discurso intrépido (parrhesia) que perturba, desconcerta e retira as pessoas do sonambulismo sem sentido crítico. Como disse Sócrates na Apologia de Platão “Falar claramente [parrhesia] é a causa de minha impopularidade”

conversão psíquica– Malcolm X ensinou que as pessoas negras deveriam se libertar das perspectivas fornecidas pela supremacia branca e modificar seu olhar, concebendo valores por elas mesmas. Deste modo as pessoas negras “se afirmariam como seres humanos, não mais enxergando seus corpos, mentes e almas segundo a ótica dos brancos, e se julgariam capazes de assumir o controle de seu próprio destino” (WEST, 1994, p.113). Cornel West descreve a ideia de conversão psíquica como uma espécie de dialética entre a certas posições de W. E. B. Du Bois, Malcolm X e Martin Luther King. Enquanto Du Bois fala de dupla consciência, “na sensação de olhar para si mesmo através dos olhos dos outros, de medir a própria alma com a bitola de um mundo que se entretém assistindo com desprezo e pena”; Malcolm X rompe com essa divisão ao propor a oposição entre o “negro da casa grande”, que se identifica, ama e protege o patrão e o negro do campo, que resiste e odeia a dominação branca. Cornel West problematiza as limitações do maniqueísmo dessa descrição retórica de Malcolm X (existiriam negros do campo com mentalidade de negros da Casa Grande e vice-versa); assim como a aversão ao hibridismo e à cultura popular do líder muçulmano (rejeitando a potência transformadora da música negra). Para não cair em posições maniqueístas e autoritárias, seria preciso redescrever a ideia de conversão psíquica de Malcolm X em diálogo com Martin Luther King, que não se afastava da música e da cultura popular negra, apostando na possibilidade de construir uma democracia plena que não se pautasse pela divisão racial. Cornel West clama pela organização de “redes e grupos nos quais a comunidade negra, seu caráter humano, amor, zelo e solicitude possam criar raízes e crescer (…). Esses espaços – que vão além da música e religião negra no que elas têm de melhor – rejeitam ideologias maniqueístas e disposições autoritárias, em favor de perspectivas morais, análises cuidadosas sobre riqueza e poder e estratégias concretas de coalizões baseadas em princípios e alianças democráticas. Essas perspectivas, análises e estratégias nunca deixam de levar em consideração a ira dos negros, porém direcionam essa ira para alvos apropriados: todas as formas de racismo, machismo, homofobia ou justiça econômica que prejudicam as oportunidades das ‘pessoas comuns’ (…) para viver com dignidade e decência. A pobreza, por exemplo, pode ser um alvo para a ira negra, tanto quanto a identidade degradada” (WEST, 1994, p.123). (Um bocado de filmes pode ajudar a pensar essas posições. Nos filmes Malcolm X e Matrix podemos encontrar uma tentativa de apresentação dessa noção de conversão psíquica. Spike Lee, além de mostrar a conversão psíquica do profeta da ira negra, chega a criar uma cena para mostrar um diálogo imaginário entre Malcolm X e um intelectual que se divide em relação à perspectiva da supremacia branca. Já as irmãs Wachowski tomam a perspectiva da supremacia branca como parte da própria estrutura de subjugação geral: não por acaso os que já nascem libertos são negros, os agentes da “matrix” são homens brancos etc. Veja o filme pensando nessa dimensão racial. Fechando esse longo parêntese, veja como a divisão entre negro da Casa Grande e negro do campo aparece em Django Livre de Tarantino). 

filodramática –  o filósofo bissau-guineense Filomeno Lopes defende que no contexto de seu país, comum a grande parte da África, em que o acesso a livros e a possibilidades editoriais são limitadas, é preciso redescrever a filosofia em diálogo com o teatro, a música, a dança etc. buscando possibilidades de desenvolver uma forma de pensamento que alcance mais pessoas. Nesse sentido, a filosofia deveria tomar a forma de uma filodramática. Filomeno Lopes desenvolve essa ideia em seu trabalho como músico (com o grupo Fifito & Bumbulum), dirigindo documentários ou dialogando com artistas que já teriam tomado este caminho, como Bonga Kwenda. A articulação da filosofia em filodramática através da canção é um objetivo também do Bota a fala (o que também converge para a paidéia democrática proposta por Cornel West).

ira/ orgulho – uma das atividades que desenvolvemos no Campus dos Malês que podem ser vistas como proto-botAfala foi um grupo de leitura que, em dez meses, discutiu e leu toda a República de Platão. Quando Platão descrever thymos como a coragem que governaria a alma daqueles que devem ser os guardiões de sua cidade ideal, o termo é geralmente a traduzido como coragem. Mas a parte da alma que guia os guerreiros pode também ser traduzida como ira ou orgulho. Em verdade, a aproximação semântica entre ira e orgulho fica evidente quando pensamos em Malcolm X como o profeta da ira negra (veja o capítulo do livro Questão de Raça de Cornel West “Malcolm X e a ira negra”). O hip-hop também canaliza muito da ira/orgulho negro num efeito curativo em relação à autoestima fundamental para autoafirmação crítica. Também é verdade que os excessos da ira/orgulho podem levar a soberba e ostentação. Tudo isso deve ser motivo de cuidado e atenção. Mais dicas sobre este tema? O livro de Michael Eric Dyson, Orgulho, coloca em questão tanto o orgulho negro quanto a soberba da supremacia branca, dialogando com a cultura hip-hop e norte-americana; já o poeta Nelson Maca em seu livro Gramática da Ira articula em versos a pedagogia deste sentimento. 

jazz – o freestyle do hip-hop não deixa de ter relação com a forma como os músicos de jazz improvisam musicalmente de modo sofisticado. Essa capacidade de procurar se adequar às circunstâncias produzindo uma fala que dialogue com seu contexto é reivindicada por Cornel West como elemento de um modo de vida intelectual. Neste sentido, o jazz não é uma forma de música, “é mais um modo de existir no mundo, um modo improvisador, de reações camaleônicas, fluidas e flexíveis perante a realidade, infenso a pontos de vistas extremistas, pronunciamentos dogmáticos ou ideologias hegemônicas. Ser um guerreiro da liberdade nos moldes do jazz significa galvanizar e ativar as pessoas desesperançosas e fartas deste mundo, criando formas de organização cujas lideranças, sujeitas à responsabilidade democrática, promovem o intercâmbio crítico de ideias e uma ampla reflexão. A interação de individualidade e unidade não se caracteriza pela uniformidade e unanimidade impostas de cima, e sim por um conflito entre diversos agrupamentos que chegam a um consenso dinâmico, sujeito a questionamento e crítica. Como acontece com o solista de um quarteto, quinteto ou banda de jazz, incentiva-se a individualidade a fim de sustentar e intensificar a tensão criativa com o grupo – uma tensão que produz níveis mais elevados de desempenho, para atingir o objetivo do projeto coletivo. Esse tipo de sensibilidade crítica e democrática opõe-se a todo e qualquer questionamento de fronteiras e limites para ser “negro”, “homem”, “mulher” ou “branco” (WEST, 1993, p.122-123)”. Essa perspectiva jazzística é utilizada por West em suas falas públicas, acadêmicas, aulas etc. Isso não significa que você não deve se preparar ao máximo, mas que sua fala, além de articulada, deve dialogar com o contexto, produzir convergência e empatia democrática.   

oprimido/ desenraizado – O que Paulo Freire decreve em sua Pedagogia do Oprimido como sendo “oprimido” – segundo Paulo Ghiraldelli Jr. – é hoje melhor entendida se falássemos em “desenraizado”, ou seja, a opressão em grande medida se relaciona com a descontextualização do conhecimento, pressupondo que o estudante não possui qualquer saber prévio, uma cultura. Articular estes saberes prévios com a cultura da academia é o desafio pedagógico. Em verdade, o enraizamento na cultura e nos problemas locais é um dos elementos que a cultura hip-hop pressupõe: não se trata da posição ressentida, mas de orgulho/ira que reflete e reivindica.  

paidéia democrática – para Cornel West a proposta de uma educação profunda, de autocriação (cultivo do “eu”) em uma direção democrática, em que a capacidade e coragem crítica socrática e a compaixão, dialogando de forma melhorista com a cultura popular (música, filmes, vídeos etc.) que hoje, em grande medida, faz parte da educação dos jovens. West se inspira na busca de Horácio (Poética, 335) por combinar o prazer com o efeito prático, o deleite com a utilidade.

percepção tragicómica – Cornel West em Democracy Matters lista três elementos que compõem seu modo de filosofar: a percepção tragicômica, o compromisso socrático e a perspectiva profética. A percepção tragicômica seria a capacidade de reconhecer os infortúnios, as derrotas, a dor da morte, mantendo a capacidade de rir de si mesmo, a esperança para continuar lutando. A música criada na diáspora traz a marca desta perspectiva tragicômica, pois diante da opressão, da violência, produziram cantos que eram ao mesmo tempo resistência e esperança, uma forma de purgar a tristeza e traduzir a dor em força pra continuar lutando/vivendo. O poeta e compositor Vinicius de Moraes define o samba como a tristeza que balança; este mesmo diagnóstico vale para o jazz, o blues, o hip hop etc. enquanto formas de religar a comunidade. Nas palavras de West: “O tragicômico está na habilidade para rir e manter o sentido de bem-aventurança em viver, para preservar a esperança ainda que dando de cara com ódio e a hipocrisia, ao invés de cair no niilismo do pânico paralisante”.

perspectiva profética– a perspectiva profética é um elemento comum ao hip hop, em que as/os rappers muitas vezes pregam suas crenças, buscando conduzir a comunidade para uma transformação. A ligação com a comunidade que se busca representar/pensar pede também que as palavras sejam exemplificadas em atos: é preciso tentar incorporar a diferença que se profetiza. Este compromisso com a justiça em relação a pessoas oprimidas é algo comum a religião judaica, cristã e muçulmana. Nessa direção profética é preciso corporificar o testemunho “em atos humanos de justiça e bondade que deem atenção para as fontes injustas de dor e miséria humana. O testemunho profético chama atenção para as causas do sofrimento injustificado e a miséria desnecessária. Ressalta especialmente a maldade de ser indiferente diante da maldade pessoal e institucional”.